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"Quero morrer no quadro oito." texto recuperado do arquivo da revista Isto É
 


Meu sobrenome deveria ser com Z, mas como meu pai era espanhol, e o homem do cartório não sabia o que era zeta, ficou Marcello Fernandes com S mesmo. Este primeiro incidente ocorreu há 63 anos, na cidade de Guariba, interior do Estado de São Paulo. Muitos outros se seguiram na vida de Marcello, mas ele só se lembra daqueles que conseguiu graças ao frontão, também chamado pelota basca.

Sua paixão pelo frontão chega a ser tão grande que, às vezes, ele diz que é uma maldição. Eu como e durmo pelota. Não consigo pensar em outra coisa, afirma Marcelão como é conhecido pelos amigos. No seu tempo de jogador profissional, era conhecido como China. Tinha os olhos apertados, e por isso fiquei sendo o falado China da praça da Sé. Quando entrava num bar, vestido todo de branco, até as luzes me seguiam.

Hoje, poucos seguem Marcelão no seu amor pelo frontão. Dizem que no dia em que ele morrer, esse esporte morrerá definitivamente no Brasil.

ISTO É E então, Marcelão, a pelota basca, no Brasil, vai ou não vai?

MARCELÃO Se depender dela e de mim, ela vai em frente. O que acontece é que eles sabe como é?, os poderosos, eles fazem de tudo para não deixar ela ir. Basta dizer que se amanhã, eles deixarem abrir uma cancha de frontão no Brasil em qualquer lugar, de preferência no Rio de Janeiro ou em São Paulo -, vocês vão ver que a cancha vai estar sempre cheia de gente. Afinal, no Brasil, antes de 37, quando o jogo de apostas da pelota basca era permitido, sempre foi assim. O frontão lotado de gente. Cheio mesmo. Noite e dia. E isto por quê? Porque a pelota é um jogo lindo.

ISTO É Mas ninguém conhece esse jogo?

MARCELÃO Como ninguém conhece? Muita gente conhece. Muitas dessas pessoas que vão viajar para Miami, por exemplo, acabam conhecendo a pelota basca. E aqui, no Brasil, tem uma cancha de pelota no Clube Atlético Paulistano, em São Paulo, onde muita gente pratica o esporte. Aliás, esta é a única cancha de pelota que sobrou no Brasil.

ISTO É Quantas pessoas jogam pelota hoje no Brasil?

MARCELÃO Deixa voltar o profissionalismo no Brasil para vocês verem como vai encher de gente querendo jogar pelota. Por enquanto, ela é jogada por uma dúzia de esportistas que gostam mesmo do esporte.

ISTO É O que é exatamente pelota basca?

MARCELÃO Bom, é um esporte, segundo se sabe, de origem espanhola, difundido no mundo inteiro, e no qual, enquanto o profissionalismo era permitido, os brasileiros foram os melhores do mundo. É praticado com uma cesta, uma bola e uma cancha, e tem as suas regras como qualquer outro esporte. Pode ser disputado em simples, individual, e em duplas. Quando havia o profissionalismo, havia apostas, feitas diretamente, em cima de cada partida, ou ainda num sistema semelhante ao do Jockey Club, com apostas combinadas em cima de vários jogadores. Isto chama-se quinela. O apostador joga no vencedor, ou em duplas primeiro e segundo colocados. Houve épocas em que era possível se apostar até em placê.

ISTO É Você disse que a pelota basca é de origem espanhola. Não há uma versão que dá a pelota como sendo de origem mexicana, ou melhor, asteca?

MARCELÃO Aí é que está, há uma divergência a respeito. Uns puxam pela versão espanhola, outros pela asteca. É a história da sardinha: cada uma puxa para o seu lado. Não é mesmo? Há uma lenda que diz que quando Fernão Cortez, o conquistador espanhol, chegou ao México, ele aprendeu esse jogo com os astecas que praticavam a pelota, jogando a bolinha na parede e aparando-a com uma cesta. Do México, então, este jogo teria sido levado pelo Cortez para a Espanha. A outra versão, no entanto, diz que a pelota é originária da região dos bascos: os pescadores bascos jogavam os peixes pescados, uns para os outros, e os aparavam com cestas. Não sei onde está a verdade, mas sei que na Espanha o esporte ganhou suas regras, e lá, entre os bascos, ele foi praticado por mais gente do que em qualquer outra parte do mundo.

ISTO É E quando a pelota chegou ao Brasil?

MARCELÃO Por volta de mil e novecentos e pouco. Não sei ao certo. Mas foi bem no início do século, entendeu? E já chegou profissional, trazida por bascos. Eles montaram o primeiro frontão no Rio de Janeiro. Tinham uma equipe de jogadores, um capitalzinho fizeram a cancha, abriram as apostas e começaram a jogar.

ISTO É O público carioca aceitou rapidamente o novo esporte?

MARCELÃO Hooorrraaa... se aceitou. Sabe como é: esporte bonito! E depois, tinha a emoção das apostas. Foi um tremendo dum sucesso. Os jogadores faziam o cânter como os cavalos antes de correr um páreo. E o pessoal, mesmo sem conhecer direito o jogo, apostava. Escolhiam o cara pelo número, pela aparência. Muito tempo depois, quando eu comecei a jogar, os caras me viam fazendo o cânter, e diziam: Hooorrraaa, aquele parece simpático. Vou jogar nele. Escolhiam meu número e apostavam. Os números iam de um a seis, e você podia apostar um com todos e todos com um. Isso dá quinze duplas. Certo? Então a pelota conquistou o público. Mas o negócio foi demais. Demais mesmo. O frontão era freqüentado até pela elite carioca. Todas aquelas mulheres bonitas, bem vestidas mesmo. As autoridades iam. Muitas autoridades iam. E começaram a construir canchas em muitos lugares. O grande jurista Ruy Barbosa, por exemplo, gostava de ir assistir a pelota. Apareceram canchas em São Paulo, e construíram uma em Campinas, outra em Curitiba e me parece que também em Santos.

ISTO É Se a pelota é realmente um esporte muito bonito, não é estranho que tenha praticamente desaparecido somente pela falta de apostas?

MARCELÃO Sabe como é: jogo é jogo. Se você coloca um pouco de açucar, as baratas vêm mesmo. Mas a verdade é que o Jockey Club era um grande adversário da pelota. Então o que aconteceu? Aconteceu que ... Como era mesmo o nome daquele civil que foi ministro da Aeronáutica?

ISTO É Salgado Filho

MARCELÃO Isto mesmo. Então, o Salgado Filho, que era presidente do Jockey Club, falou com o Getúlio Vargas e ele fechou os frontões. O Jockey Club naquele tempo fazia uma arrecadação de 200 contos por domingo. Era muito pouco. Depois que fecharam os frontões, a renda subiu. Naquela época São Paulo tinha pouco mais de um milhão de habitantes. Hoje, talvez não fosse problema.

ISTO É Mas qual foi o argumento encontrado para fechar os frontões?

MARCELÃO Eles simplesmente disseram que não podia mais haver jogos de apostas do homem sobre o homem. Esse foi o argumento.

ISTO É No caso das apostas da Loteria Esportiva, as apostas não são dos homens sobre os homens?

MARCELÃO Claro que são. E daí eu é que pergunto: como é que fica? Naquele tempo os juristas se pronunciaram sobre o assunto. Antes disso, num dos muitos fechamentos que houve, o maior jurista brasileiro o grande Ruy Barbosa -, já dava seu parecer dizendo que, se o argumento para o funcionamento do Jockey era o aprimoramento da raça eqüina, então os frontões deveriam ficar abertos, pois eles significavam o aprimoramento da raça humana.

ISTO É E o pessoal da pelota basca proprietários de frontões e pelotaris não reagiu?

MARCELÃO Que nada. Eram todos uns coitados. Reagir contra os poderosos, como? Uns foram jogar no exterior, outros ficaram por aqui mesmo e mudaram de profissão. Uns poucos, que juntaram algum dinheirinho, foram vivendo de renda, e a coisa ficou por isso mesmo. Só eu é que fiquei brincando, sem nunca ter encontrado o apoio de ninguém. Imagine que tristeza: nos bons tempos, fomos os melhores do mundo.

ISTO É Ora, mas nunca houve um campeonato mundial de pelota?

MARCELÃO Olha aqui, em 1932 o frontão foi introduzido na China. E para a festa de inauguração, eles organizaram um torneio internacional do qual tomavam parte os melhores pelotaris de várias partes do mundo. Os chineses levaram mexicanos, cubanos, espanhóis, não me lembro bem se também os filipinos e os brasileiros. Ou seja: a nata. E no dia da inauguração, em Xangai, eles colocaram uma dupla de brasileiros para disputar 10 partidas de quinela, contra as duplas de cada um dos demais presentes. Pois bem, os brasileiros paparam todas as partidas. Hooorrraaa, rapaz, os homens ficaram loucos. Acabaram com esse negócio de fazer bonitinho. Espanha contra Brasil, México contra Cuba, e não sei mais o quê. Misturaram os brasileiros com os jogadores dos demais países, em duplas, que era para dar jogo.

ISTO É E esta turma, que foi para Xangai, era formada por brasileiros mesmo, ou por espanhóis e mexicanos radicados no Brasil?

MARCELÃO Brasileiros mesmo. Gente como Prudêncio, Félix, Bilbao, Afonso, Isidro, brasileiros que aprenderam a jogar frontão aqui mesmo. Aliás, naquela época, mesmo os estrangeiros que vinham jogar pelota no Brasil, vinham de lá, crus. Sabiam jogar um pouquinho, mas era aqui que se desenvolviam.

ISTO É E este pessoal começava a jogar pelota por puro amor ao esporte, ou para ganhar dinheiro?

MARCELÃO É um pouco a história do jogador de futebol. Coitados, eles normalmente vêm de família pobre. Não sabem ler nem escrever. Só sabem mesmo jogar futebol. Então, se especializam, procurando chegar ao profissionalismo para serem alguma coisa na vida. Com os pelotaris acontecia a mesma coisa. Se você é uma pessoa bem postada, de boa situação financeira, você não vai fazer nada que seja arriscado. Não precisa. A pelota basca é um esporte perigoso. Você pode tomar um pelotaço e morrer na quadra. Então, quem ia procurar jogar frontão? Eu respondo. Era o pessoal mais humilde. Gente que procurava alcançar um situação melhor na vida, se arriscando dentro das canchas. É como o pessoal que faz boxe. Você só vê gente pobre no ringue. Rico não vai se arriscar a levar soco. Não é mesmo? O próprio Eder Jofre, que ganhou dinheiro com o boxe, vem de família humilde. Então essa é a história dos nossos pelotaris. Quando os frontões estavam abertos, havia pais de garotos que iam lá pedir para a gente proteger os filhos deles, para que conseguissem ser bons jogadores. O ordenado de um pelotari era muito grande. Já em 1937 eu ganhava, só de ordenado, 3 contos por mês. Com as propinas que os torcedores me davam, tirava uns 5 contos. O salário mínimo da época eu não me lembro. Mas pelo amor de Deus. Para vocês terem uma idéia de quanto representavam 5 contos basta dizer que uma mansão na avenida Paulista, naquela época, custava 75 contos.

ISTO É Qual era o movimento financeiro de um frontão?

MARCELÃO Em São Paulo, nós tínhamos dois frontões funcionando e o movimento de pules vendidas, por dia, era de 15 mil pules para cada frontão. Começava à 1h30 da tarde e ia até a meia-noite, no início. E mais tarde, passou a funcionar das 8 da noite até a meia-noite. Não se cobrava ingresso. Exigia-se apenas gravata, paletó e sapatos engraxados.

ISTO É Como você começou a jogar frontão?

MARCELÃO Em 1928. Estava atrás de um emprego e meu irmão saiu comigo para ver se conseguia me arrumar alguma coisa. Fomos à procura de uma amigo dele, que não estava no local marcado. Iria voltar mais tarde. Para passar o tempo fomos assistir a uma partida de frontão, que nesse tempo funcionava na rua Formosa, perto do lugar onde a gente se encontrava. E todo aquele troço de homem pulando, público gritando, me deixou louco. Eu fiquei... fiquei... fiquei louco mesmo. Boca aberta, olhando todas aquelas coisas. De repente meu irmão virou para mim e disse: Vamos embora Marcello. Aí eu falei para ele: Não ovu não. Se você não em arrumar um emprego aqui dentro para eu jogar esse jogo, eu não vou trabalhar. E ficou aquela discussão vamos, não vamos. Bom, o resultado é que eu venci e ele acabou chamando o dono do frontão, que era o Arsussa um basco, e disse para ele que eu queria trabalhar lá de qualquer jeito. Disse também que eu não tinha físico que não tinha mais isso e mais aquilo, e também que eu não tinha físico, que não dava. Arsussa virou para ele e disse justamente o contrário. Disse que eu tinha uma bom físico, que se eu quisesse ele me arrumava um emprego. Então, no dia seguinte, eu fui todo arrumadinho com uma gravata mixa, um terninho meio ruim que eu tinha, sabe como é e às 7 horas da manhã já estava lá. Aí, tão logo eu entro no frontão, me vem um português de tamanco e me diz: Você é que é o Marcello? Eu disse: Sou sim. Então pode começar a trabalhar, ele me disse, e me perguntou: Mas o senhor não trouxe nada? E os seus tamancos? Eu falei: Mas que tamancos Ele falou: O senhor veio aqui para fazer limpeza no frontão. Aí é que eu entendi o negócio. Mas não tive dúvidas, arregacei as mangas e fui limpar o frontão. Foi assim que comecei: como faxineiro. E achava a coisa mais deliciosa desse mundo. Quando o relógio do Colégio São Bento tocava 11 horas, eu ia treinar. Pouco tempo depois, fui promovido a auxiliar de cancheiro. Auxiliar do homem que tomava conta do material dos pelotaris das cestas, das bolas, dessas coisas todas. E como os pelotaris não gostavam de costurar suas bolas (todos os pelotaris eram obrigados a costurar pelo menos uma bola), então eles me davam 500 réis cada um para que eu costurasse as bolas deles.

ISTO É Quem te ensinou a costurar uma bola?

MARCELÃO Foi o cancheiro. E parece difícil, mas não é não. É só pegar borracha maciça, borracha crua, e ir juntando as tiras bem coladinhas umas às outras. Depois costura com linha, e por cima da linha vêm duas capas de pergaminho pele de carneiro -, uma sobre a outra. Mas nesse emprego, auxiliar de cancheiro, eu já havia progredido bastante. Paralelamente a isso eu continuava treinando a pelota. Meu negócio era ser pelotari, é claro. O frontão fechou diversas vezes naquela época. Fechou em 1935, por exemplo. E em 1930 havia sido empastelado. Botaram fogo num dos frontões aqui de São Paulo. E quem fez isso foi um lutador de luta romana, um tal de Antonelli, que era irmão de um político. Foi ele quem comandou o empastelamento.

ISTO É Tudo bem, mas quando é que o Marcelão, que iria se transformar em China falado, começou a jogar profissionalmente?

MARCELÃO Comecei a jogar em 1936. Quer dizer, tive pouco tempo como profissional. Vocês podem ver que fui prejudicado. Sempre que eu ia passar a profissional, vinha alguém e fechava os frontões. Quando isso acontecia, eu perdia até meu emprego de auxiliar de cancheiro. Nestas ocasiões eu ia trabalhar no que dava pé. Fui até cobrador de bonde da Light. Mas ficava sempre de olho na reabertura dos frontões. O emprego de cobrador até quem arrumou foi o meu irmão, que era motorneiro. Naquele tempo, quem trabalhava para a Light tinha cartaz. Diziam que quem trabalhava em companhia estrangeira era num sei o que, num sei o que lá. Mas o meu negócio era a pelota, estava habituado a viver no meio dos pelotaris, andava numa boêmia desgraçada, e não tinha a menor condição de levantar ás 6 da manhã para ir trabalhar.

ISTO É O pelotari era tão famoso quanto o jogador de futebol?

MARCELÃO O pelotari era um deus. Quando saía nas ruas, todo mundo apontava, cochichava no ouvido do outro: Cê viu quem está lá? É o Marcelão, o Afonso, o Prudêncio... Coisas assim. Todo mundo queria ser amigo de um pelotari. Os grã-finos convidavam a gente para ir jantar na casa deles. Tinha uma cabaré, ali na rua Formosa, pertinho de onde fica a Light, que era o melhor de São Paulo. Quando os pelotaris chegavam lá, acabava tudo, a mulherada caía em cima da gente. Num desses lugares que a gente ia para dançar não era cabaré, não, era um lugar fino, onde só ia gente fina -, quando a gente chegava, o baterista e o chansonnier paravam de tocar e cantar e era aquele negócio de tararatatá... tchim, buummm! Eles anunciavam a chegada da gente: Atenção, atenção! Acabam de chegar neste momento os pelotaris... E diziam o nome de fulano, fulano e Marcello. Então era aquela coisa de todo mundo pa, pa, pá... Bater palmas. E querer pagar a despesa da gente. Era uma beleza mesmo. Todo mundo queria ser amigo da gente. Embora existissem nomes famosos como o de Arthur Friedenreich no futebol, os mais falados eram os pelotaris. O nível de nossa platéia também era melhor. Nós tínhamos geral, arquibancada, camarotes e frisas. E tínhamos porteiros até para a geral. Era uma platéia muito seleta. Ninguém falava palavrão.

ISTO É E brigas, não havia?

MARCELÃO Briguei com um turco que tinha muito dinheiro. Ele ia quase todo dia ao frontão, e gostava de apostar nas partidas que a gente jogava dois contra dois, para aquecer, antes de começar a seção ou as partidas de quinela do dia. E, como é comum, houve um chorilho de pontos. Nós a toda na frente. O turco não teve dúvidas, começou a propor apostas. Pagava dez contra dois. Coisas assim. Apostava na nossa dupla. Veio o intervalo. Sabem o que aconteceu?Aí quem desgarrou foram eles. Nós estamos para ganhar o jogo até hoje. Mas o turco tinha apostado muito dinheiro. E pensou que tivesse havido marmelada. Sabem como é: todo mundo pensa; onde o homem toma parte em jogos, a primeira impressão que se tem é que houve marmelada. Mas quem vai provar uma coisa dessas. E esse turco, então, me esperou na rua. Não deu outra coisa. Foi um pau danado. Eu era moço, enxuto. Dei-lhe uma bofetada que o cara se estourou todo.

ISTO É Sem poder brigar fora da cancha, o pelotari bate e apanha dentro dela, na briga com a bola. Certo?

MARCELÃO Certo. E como apanha se não se cuidar. Um dos meus companheiros, certa vez, perdeu todos os dentes. Ele estava entrando corretamente na bola. Uma gota de suor que escorreu sobre sua vista, no entanto, assustou-o e, naquela fração de segundo, ele perdeu o controle e a bola entrou em sua boca. Outro levou um pelotaço na testa, bem em cima do nariz e perdeu o paladar e o olfato para sempre. No Brasil, que eu saiba, apenas dois pelotaris morreram na cancha. E ainda outro dia, eu próprio sofri um acidente. Levei um pelotaço na boca, que perdi sete dentes. Tive que p� uma ponte.

ISTO É E qual é a bola mais perigosa?

MARCELÃO É a que nós chamamos de carambola. Aquela que a gente joga contra o paredão de frente, depois ela bate no paredão lateral e vem com aquele efeito danado, fazendo zuuummmmm. Sabem como é? Vem assim, oh! Zzzuuummmm... Girando feito pião. Quando a gente vai apará-la na cesta, ela pode escapar e bater na cara, cabeça ou mesmo na nuca de um parceiro de jogo.

ISTO É E qual é o grande segredo da pelota?

MARCELÃO O negócio é responder a bola o mais rapidamente possível, e jogar com força em cima do adversário. No peito dele. Aí o coitado tem de se virar para aparar a bola.

ISTO É E atrapalhar o adversário com o corpo? Ficar na frente na hora em que o outro vai arremessar a pelota. Não tem isso?

MARCELÃO Não, não tem. Se alguém atrapalhar, volta o ponto. Digamos: eu vou entrar numa bola. Entrei. Encestei tahmm... Matei a bola e estou pronto para arremessar. O adversário vem e me cruza a frente. Eu imediatamente paro. Agora, tem outra situação. Tem uns caras que, às vezes, com malícia, vira e mexe entram na frente para atrapalhar. O caso do Iriarte. Esse era um cara malandro. Cheio de malícia. Quando eu encestava a bola e estava pronto para arremessar, ele entrava na minha frente. Modéstia à parte, eu tinha uma direita que era uma tijolada. Foi a mais forte do Brasil. Então, numa partida, ele fez uma de suas manhas. Eu não tive dúvidas. Laapttt... Castiguei a bola em cima dele. Ela passou vuuptt... zumbindo ao lado da cabeça dele. Aí ele virou-se para mim e falou: Que é isso Marcelão? Você tá ficando louco? E eu disse: Já avisei para você não entrar na minha frente seu filho da p... Nunca mais entrou.

ISTO É O bom pelotari joga a bola onde quer?

MARCELÃO Eu jogo. Por isso na pelota os pelotaris têm muito respeito uns pelos outros. Numa ocasião, jogando contra um espanhol, tive de aprontar uma bem bonita para ele aprender a me respeitar. Tem um tipo de bola, que a gente pega para o rebote, que o adversário fica prensado na parede. Então, quando isso acontece, é costume a gente, ao invés de arremessar a bola com força, apenas lançá-la devagar contra o paredão. Nestas circunstâncias, é de praxe o adversário não responder. Perde o ponto, e acabou. O público já sabe disso. Ninguém vai reclamar. Pois bem, numa dessas ocasiões, o desgraçado do pelotari espanhol ficou preso na parede. Eu encestei a bola, vi ela naquela situação e, ao invés de mandar brasa, apenas arremessei a pelota devagar contra o paredão. Não é que o desgraçado, ao invés de respeitar a regra, entrou na pelota e fez o ponto! Ahh, rapaz. Eu fiquei louco. Mas disse para mim mesmo: Deixa para lá que esse filho da p... vai aprender. Dito e feito. Numa outra jogada, aconteceu a mesma coisa. Aí eu não tive dúvidas, encestei a bola e mandei com toda a força nas costas dele. Quebrei-lhe duas costelas. O técnico me chamou e disse: Marcelão, você está louco?. Eu respondi que não.

ISTO É Que aptidões precisa ter um bom jogador de frontão?

MARCELÃO Para começar, bons olhos. Depois, bons ouvidos. E reflexo. Depois, é preciso saber beber bem pelotari é boêmio. Comer bem. E, acima de tudo, tem de ser macho. Ah, tem que gostar de mulher, também. Elas caem em cima dos pelotaris, ah, ah, ah...

ISTO É E você prentende continuar lutando pela reabertura do frontão no Brasil?

MARCELÃO Pretendo. Aliás, quero morrer numa cancha de frontão. E quero ser enterrado no quadro oito que fica bem no centro da cancha.